Todos os dias, a empresa contratada para fornecer alimentação aos
cerca de 1.300 detentos deixa as quentinhas na portaria da penitenciária
de Alcaçuz. Naquele momento, agentes chamam um preso, conhecido como
“pagador”, que tem um carrinho já preparado para levar os alimentos aos
colegas. Sim, são os presos que distribuem a comida entre si –podendo
decidir, inclusive, quem se alimenta.
Essa é só uma das rotinas que mostram o domínio dos presos na
penitenciária de Nísia Floresta (na Grande Natal), onde, no dia 14 de
janeiro, houve um massacre com pelo menos 26 mortes de detentos.
O UOL ouviu por uma semana relatos de agentes, presos, advogados e autoridades sobre como era o presídio antes do massacre.
Em março de 2015, uma rebelião destruiu quatro dos cinco pavilhões.
Desde então, os agentes não entram mais na unidade para serviços.
“Quem é que entra com os presos todos soltos para entregar comida? Isso ocorre por falta de segurança. Sem contar que isso não é nosso serviço. Nossa missão é manter a ordem e a segurança na unidade. Os presos que estão lá ganham remissão de pena pelo serviço”, explica a presidente do Sindicato dos Agentes Penitenciários do Rio Grande do Norte, Vilma Batista.
Segundo ela, há um número reduzido de agentes de plantão: antes do
massacre do dia 14, eram seis na escala. Agora, com o agravamento da
crise, esse número subiu.
Ela conta ainda que os agentes têm um limite de acesso. “Os presos
estão soltos, e a gente não tem acesso às áreas. Só quando vem reforço é
que a gente faz uma intervenção. O limite de acesso é antes do portão”,
afirma.
Isso interfere também quando há necessidade de um advogado conversar
com um preso. “Quando precisamos conversar com um preso, vamos até um
guichê de atendimento. Lá, vou a um agente do administrativo, que
procura saber em que pavilhão ele está. Você pega esse papel e leva a um
agente, que chama um preso chaveiro geral. Ele pega o papelzinho, vai
correndo ao pavilhão e, quando chega nas proximidades, chama outro preso
chaveiro, que no pavilhão começa a gritar para chamar o preso”, conta o
advogado e coordenador estadual do Instituto Brasileiro de Ciências
Criminais, Gabriel Bulhões.
“Ele vem, então, até a porta do pavilhão, e o chaveiro abre e o tira.
Então, vem com o outro chaveiro até o rol de Alcaçuz, quando ele deixa o
complexo”, complementa.
Os presos pagadores são jurados de morte por outros detentos por
prestarem serviço ao Estado. Por isso, eles ficam em outra acomodação
separada.
Ações fracassadas
A versão de que os presos estão soltos é confirmada pelo Estado, Ministério Público e Justiça. O juiz da Vara de Execuções Penais de Natal, Henrique Baltazar afirma que o Estado até tentou reconstruir o que houve de destruição, mas fracassou.
“Em março de 2015, quando houve as grandes rebeliões, o Estado disse
que ia reconstruir, gastar R$ 8 milhões. Deixei claro que era dinheiro
jogado fora, porque iam quebrar tudo de novo. Colocar grades em cela que
cabiam oito, mas tinha 20? Era óbvio que iam arrebentar. O dinheiro foi
quase todo perdido. Se for recuperar agora, vai acontecer o mesmo”,
disse.
Com os presos no controle, o MP (Ministério Público) acredita que houve um fortalecimento das facções.
“Já faz 22 meses que tivemos a pior rebelião de Alcaçuz. Tudo foi
quebrado, apenas o pavilhão 5 era inteiro –e agora é o mais depredado.
Desde março de 2015 que está tudo fora de controle nos demais pavilhões,
que os presos ficam soltos e não se recolhem as celas. Assim, as
lideranças do crime exercem sua ditadura sobre os demais presos. Se não
resolvermos isso, não resolveremos o problema”, afirma o
Procurador-Geral de Justiça, Rinaldo Reis.
Lá dentro, segundo apurou o UOL, presos de facções cobram
“mensalidades”. O PCC, por exemplo, cobra valores e faz rifas rotineiras
com intuito de arrecadar fundos. Já o Sindicato do Crime tem um
“caixa”, em que cada detento ligado a ela é obrigado a pagar R$ 50
mensais.
Problemas estruturais
O pesquisador e coordenador do Obvio (Observatório da Violência Letal Intencional), ligado à Universidade Federal Rural do Semi-Árido, Ivênio Hermes, explica que além dos problemas causados pelo domínio dos presos, há outros estruturais que tornam ainda mais difícil a existência da unidade.
O presídio é dividido em cinco pavilhões, sendo que o último deles, o
5, é independente e chamado de penitenciária Estadual Rogério Coutinho
Madruga. Mas o prédio fica dentro do complexo, separado de outros
pavilhões apenas por um portão –que foi destruído no sábado. Ele
abrigava pessoas do PCC (Primeiro Comando da Capital).
“Alcaçuz tem 10 guaritas, mas apenas nove funcionam. Dessas, só cinco
estão sendo utilizadas porque as outras não possuem condições de um
homem subir. E elas não se comunicam entre si. Os guariteiros [policiais
que ficam nas guaritas] não podem caminhar pelo muro para fazer a
segurança do perímetro. Há um ponto cego, onde não há guarita, e faz com
que uma parte inteira do presídio seja local de fugas”, explica.
Além disso, o projeto executado seria diferente daquele pensado no
início. Um exemplo foi a localização da obra, construída sob dunas
móveis. Em 1998, conta uma moradora da região, o local onde Alcaçuz foi
erguido era o ponto mais alto da região. Hoje, há várias outras dunas
mais altas, que permitem a visão completa da penitenciária.
“O piso não é de concreto, e assim é fácil fazer escavações. Os
pavilhões são de alvenaria, tijolo, que são facilmente quebráveis. Não
há como fixar grades corretamente. Sem contar que um dos lados fica
muito próximo da comunidade e permite que pessoas lancem para dentro
qualquer material”, explica Hermes, que também é engenheiro civil.
Ações do governo
A principal ideia do governo para acabar com a guerra de facções –até a construção de novos presídios– é erguer um muro para separar os detentos de grupos opostos. A obra teve início nesse sábado (22).
O governador Robinson Faria (PSD) afirmou que não tem como meta
reformar Alcaçuz e pretende acabar com a unidade após a construção dos
três presídios previstos.
Já sobre a falta de pessoal, o governo anunciou que vai contratar 700
agentes penitenciários provisórios. A medida, porém, é criticada pelo
sindicato da categoria, que planeja uma greve em protesto contra a
medida.
Presos no comando.
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