á por 2003 ou 2004, quando o primeiro governo do PT ainda estava em
lua-de-mel com a população, a imprensa se preocupou em noticiar o
presente de aniversário que Antônio Palocci deu a Lula: um DVD do filme Era uma vez no oeste, de Sérgio Leone, produção ítalo-americana de 1968 que já nasceu como um clássico do cinema popular.
Vejam que exemplo de carinho! Enquanto o mensalão era gerado nos
subterrâneos do governo, o Ministro da Fazenda demonstrava o seu apreço e
a sua lealdade ao velho companheiro de batalhas. Lula deveria
aproveitar o fim de semana para descansar do seu papel de salvador da
pátria e assistir ao filme com a família.
Será que o presidente viu a fita até o fim? Venceu uma obra que,
apesar das cenas de ação, obriga o público a pensar para entender a
história? E o aviso enviado com uma década e meia de antecedência? Ele
percebeu o sinal? Nesse tipo de história, os vilões costumam matar-se
uns aos outros. E o último tiro é pelas costas.
Faz sentido que Palocci tenha dado Era uma vez no oeste para Lula.
O presente pode ser considerado uma piada interna dos partidos de
esquerda. De todos os gêneros cinematográficos surgidos na Europa do
pós-guerra, nenhum foi mais prolífico na politização revolucionária das
massas do que o chamado spaghetti western.
Entre as décadas de 1960 e 80, parece que todo comunista europeu
queria fazer um bangue-bangue. Em oposição aos filmes de Hollywood, até
por questões orçamentárias, não havia massacres de índios ou elogios ao
pioneirismo que tornaria possível o american way of life.
O bangue-bangue à italiana normalmente conta com heróis silenciosos
cujo destino é rebelar-se contra latifundiários protegidos por mexicanos
loucos que gostam de atirar para o alto e estuprar camponesas. Às vezes
o discurso político é tão explícito que o filme se torna um panfleto.
O ódio ao progresso é um tema obrigatório. No filme que Lula ganhou,
por exemplo, todo o mal é causado por um capitalista que está levando a
ferrovia para o oeste. O vilão é retratado como uma espécie de verme que
se esgueira pelo deserto e deixa o seu rastro asqueroso na forma de uma
estrada de ferro.
A música de Ennio Morricone transformou Era uma vez no oeste numa
obra-prima capaz de emocionar o mais insensível dos espíritos. Fez
muito sucesso na América Latina — assim como os outros 500 filmes do
gênero rodados na Itália — e serviu de apoio para a educação política de
plateias que mais tarde votariam em partidos de esquerda.
Desde as primeiras publicações do filósofo húngaro Georg Lukács, no
princípio do século XX, a esquerda europeia entendeu que a política está
mais nas ações culturais e menos na pregação ideológica direta.
Ninguém tem saco para ouvir os discursos dos políticos. Bom mesmo é
ler um romance, ver um filme, passar o tempo com uma boa história em
quadrinhos. Das entrelinhas e do pano de fundo, quase subliminarmente,
surgem as informações que farão o público acreditar em novas ideias ou
rejeitar valores consagrados e até então inquestionáveis.
Uma revolução violenta pode ser contida ou derrotada com relativa
facilidade. Uma infiltração cultural é mais trabalhosa, mas os
resultados aparecem com eficácia. E o melhor: toda guerra cultural
acontece nas barbas do poder vigente.
No Brasil, na época do regime militar, os censores implicavam com
filmes franceses que ninguém via — só por que mostravam mulher pelada?
—, mas nunca reclamaram dos spaghetti westerns que chegavam às
multidões. Meia dúzia de Leones eram suficientes para despertar nos
operários os mais belos sonhos de desforra e revolução.
Resta dizer que a “ofensiva cultural” não é privilégio da esquerda. A
direita anglófila demorou a entender o que estava acontecendo, mas,
aprendida a lição, passou a agir com uma voracidade sem precedentes. Um
belo exemplo pode ser encontrado no livro Quem pagou a conta?, de Frances Stonor Saunders, que explica como a CIA patrocinou fóruns e publicações conservadoras durante a Guerra Fria.
Mas isso é assunto para outra ocasião.
Voltando ao presente que Palocci deu ao “companheiro” nos tempos de bonança, fico me perguntando se o presidente viu Era uma vez no oeste até
o fim, mas a verdade é que isso não tem a menor importância. Algo
sugere que Lula vai ter bastante tempo para ver — ou rever — o filme de
Leone, bem como os outros 500 spaghetti westerns que de alguma forma o ajudaram a alcançar o poder.

Palloci fritou o molusco!
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