O policial aposentado Fabrício José Carlos de Queiroz trabalhou durante onze anos para o deputado estadual Flavio Bolsonaro.
Oficialmente, ele era assessor do gabinete. Na prática, era uma espécie
de motorista faz-tudo do parlamentar, além de ser íntimo de toda a
família, incluindo o presidente eleito. A relação profissional entre os
Bolsonaro e Queiroz é ainda mais extensa. A mulher e duas filhas de
Queiroz também já integraram o quadro de assessores tanto de Flavio como
de Jair Bolsonaro. A relação, antes aparentemente tranquila e cheia de
confiança mútua, agora virou um estorvo.
O jornal O Estado de S. Paulo revelou que o nome do
policial constava de uma relação de funcionários da Assembleia
Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj) que caíram numa espécie de malha
fina. O Coaf, órgão federal que monitora as movimentações bancárias,
detectou uma série de transações exóticas na conta bancária do
motorista, a começar pelo volume “incompatível” com a renda do
correntista.
Entre janeiro de 2016 e janeiro de 2017, Queiroz, que ganhava 23 000
reais entre salários da Alerj e da PM, movimentou 1,2 milhão de reais.
Ao buscarem a origem de tanto dinheiro, os técnicos do Coaf esbarraram
num segundo fato estranho: uma parte dos depósitos feitos na conta era
oriunda do próprio motorista, da mulher dele e de suas duas filhas. Mas
uma segunda parte vinha de outros funcionários da Alerj. Havia ainda uma
curiosa coincidência de datas. O dinheiro entrava na conta de Queiroz
nos dias subsequentes ao pagamento dos servidores da Alerj, conforme
revelou em sua versão on-line a coluna Radar, publicada por VEJA. Os
técnicos olharam então o destino do dinheiro — e encontraram um terceiro
fato estranho: Queiroz sacava os valores na boca do caixa, em dinheiro
vivo, tão logo recebia os depósitos.
O Coaf classificou as operações financeiras do motorista como
“suspeitas” — e a hipótese que emergiu da análise da movimentação
atípica foi que estaria sendo cobrado um “pedágio” dos funcionários. A
prática do pedágio não é uma novidade na Assembleia fluminense, nem no
Parlamento brasileiro em geral. Em 2013, a deputada Inês Pandeló, do PT,
foi condenada por ficar com uma parte do salário de seus assessores. A
deputada Janira Rocha, do PSOL, quase perdeu o mandato depois que seus
auxiliares denunciaram que eram obrigados a repartir com ela parte do
salário. O relatório informa que oito assessores do deputado Flavio
Bolsonaro depositavam regularmente dinheiro na conta do motorista logo
depois do pagamento, incluindo o próprio Queiroz, suas filhas Nathalia e
Evelyn e sua mulher, Márcia. No período, a família transferiu 221 000
reais (veja o quadro ao lado). A operação, por si só, ainda não é uma
evidência concreta de irregularidade, mas a suspeita é inevitável: o
deputado Flavio Bolsonaro embolsava parte do salário de seus servidores?
Ao envolver o filho mais velho do presidente eleito, o caso já ganhou
ares de escândalo. Mas apareceu um ingrediente ainda mais intrigante. O
relatório do Coaf revelou a transferência de 24 000 reais da conta do
motorista para a conta de Michelle Bolsonaro, a futura primeira-dama.
Perguntado a respeito, o presidente eleito disse que não era nada de
mais. “Emprestei dinheiro para ele (Queiroz) em outras oportunidades.
Nessa última agora, ele estava com um problema financeiro. Não foram
24 000, foram 40 000. Eu podia ter botado na minha conta. Foi para a
conta da minha esposa, porque eu não tenho tempo de sair. Essa é a
história, nada além disso”, disse, sem explicitar a data, o motivo do
empréstimo, sem ter declarado a transação no seu imposto de renda e,
para completar, sem explicar por que alguém com 1,2 milhão de reais
passando por sua conta precisa tomar 40 000 emprestados. O deputado
Flavio Bolsonaro, que se elegeu senador em outubro, também minimizou o
caso: “Hoje o Fabrício Queiroz veio conversar comigo. Ele me relatou uma
história bastante plausível. Me garantiu que não teria nenhuma
ilegalidade nas suas movimentações”. E nada mais disse — nem ele nem
Queiroz.
Esperava-se que o motorista aparecesse, contasse a “história plausível” e
colocasse um ponto-final no caso. Mas não foi isso que aconteceu. Até o
fechamento desta edição, Queiroz continuava em silêncio. Mais que isso:
ele sumiu — aliás, o sumiço tornou-se coletivo, pois ele, a mulher, as
filhas e todos os assessores depositantes evaporaram, o que aumenta as
suspeitas de que alguma coisa fora do normal se passava no gabinete de
Flavio Bolsonaro. Em 2007, logo depois de assumir o mandato, Flavio
contratou Queiroz, Márcia e Nathalia, que tinha então apenas 18 anos.
Personal trainer, a jovem acumulava as tarefas do gabinete com aulas em
academias de ginástica. Em 2016, ela foi transferida para o gabinete de
Jair Bolsonaro, em Brasília, mas continuou trabalhando no Rio. Sua vaga
foi preenchida pela irmã Evelyn, que trabalha como manicure. Juntas,
Márcia e Nathalia transferiram 123 000 reais para a conta do motorista,
pouco mais da metade de tudo o que receberam da Alerj durante treze
meses. Dos quatro assessores da família Queiroz, apenas Evelyn continua
no cargo. Márcia, que repassou 37 000 reais, deixou o gabinete em agosto
de 2017. O motorista e Nathalia foram exonerados em outubro, às
vésperas do segundo turno da eleição presidencial. Na época, o documento
do Coaf já circulava entre procuradores e promotores do Ministério
Público.
Diante da repercussão do caso, na quarta-feira 12 o presidente eleito voltou a falar sobre o assunto. Não explicou nada, mas o tom mudou. “Se algo estiver errado, que seja comigo, com meu filho, com o Queiroz, que paguemos a conta desse erro. Não podemos comungar com o erro de ninguém”, afirmou. E acrescentou: “Aconteça o que acontecer, enquanto eu for presidente, nós vamos combater a corrupção com todas as armas do governo”. Bolsonaro disse uma novidade: o motorista, segundo ele, vai aparecer na semana que vem.
Mais um artista brasileiro.
Com reportagem de Edoardo Ghirotto
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