A liberdade de expressão é um valor fundamental para definir o grau
de civilização de uma sociedade e de seu ordenamento democrático. Quanto
maior, mais avançado é o estágio civilizatório. E quanto mais cerceada,
maior o déficit democrático de um país. O Brasil avançou
extraordinariamente neste requisito com a Constituição de 1988 mas, nos
últimos tempos, temos assistido retrocessos inaceitáveis, em decorrência
da ação ensandecida de extremistas de direita ou de esquerda.
Relembremos alguns fatos.
Em 2017 o então senador Cristóvam Buarque foi chamado de golpista e
hostilizado por radicais de esquerda, quando do lançamento do seu livro
“Mediterrâneos invisíveis”, na Universidade Federal de Minas Gerais. Na
mesma noite o ex-senador teve de ser escoltado pela Polícia Militar,
quando ia proferir uma palestra, tal a agressividade dessa militância.
Motivo de tanto ódio: Cristóvam votou favorável ao impeachment de Dilma.
Dois anos antes, o compositor Chico Buarque de Holanda, um patrimônio
da cultura brasileira, foi hostilizado por um grupo de antipetistas em
uma movimentada esquina do Leblon, no Rio de Janeiro, por causa de suas
posições políticas.
Se puxarmos pela memória, vamos nos lembrar das agressões à blogueira
cubana Yoani Sánchez, hostilizada por militantes de esquerda defensores
da ditadura cubana, desde que pisou no solo brasileiro. Em São Paulo,
foi impedida de proferir uma palestra na Livraria Cultura como mostra o
potente e incisivo filme de Rafael Bottino e Peppe Siffredi: A Viagem de
Yoani.
Troca-se o sinal, mas a intolerância é a mesma. Nem mesmo ambientes
de dor e consternação são respeitados. O ex-ministro Guido Mantega foi
alvo da fúria de antipetistas, quando sua esposa, já falecida, estava
internada no Hospital Albert Einstein para se tratar de câncer. Essa
raiva cega também se manifestou em frente ao Hospital Sírio Libanês,
onde estava internada Marisa Letícia, esposa de Lula, falecida em 2017.
Vamos aos dias de hoje. Na semana passada a colunista Miriam Leitão,
uma das vozes mais respeitadas do jornalismo brasileiro, e o cientista
político Sérgio Abranches foram a bola da vez. Por pressão de
agrupamento de extrema-direita, foi suspensa a palestra que iam proferir
em uma feira de livros em Jaraguá do Sul.
A independência de Miriam incomoda aos dois extremos. Em 2017 foi
chamada de terrorista por sindicalistas vinculados ao PT em um vôo
comercial. Ironia da história: terrorista também foi o termo utilizado
por seus torturadores quando foi presa durante a ditadura militar.
Miriam voltou a ser estigmatizada na última nessa sexta feira, dessa
vez pelo presidente da República. Sem compromisso com a verdade, Jair
Bolsonaro inventou que ela ia participar da guerrilha do Araguaia,
quando foi presa em 1971. Não satisfeito, o presidente disse que a
jornalista mentiu quando afirmou que foi torturada, durante a ditadura,
fato fartamente documentado na justiça militar.
As palavras do presidente serviram de estímulo aos seus radicais.
Rapidamente sua tropa de choque poluiu as redes sociais com a divulgação
de uma foto, dizendo que a moça que aparece com uma metralhadora ao
lado de um militar é Miriam Leitão. Puro fake. A foto é de bancárias do
Bradesco sendo treinadas por militares nos anos de chumbo para reagirem à
assalto a bancos praticados por agrupamentos de esquerda.
O pano de fundo da escalada da intolerância é a radicalização
política instalada no Brasil nos anos do lulopetismo e alimentada pelo
atual presidente. Exaustivamente Bolsonaro demonstra ter dificuldade
para conviver com o contraditório. Seu cacoete autoritário joga mais
lenha na fogueira quando condena oponentes e ameaça cercear a liberdade
de expressão por meio do dirigismo estatal da produção cinematográfica
do país.
Sempre houve na esquerda correntes mais extremadas, refratárias aos
valores democráticos e adepta de uma concepção segundo a qual a
violência é a parteira da história. Da mesma maneira sempre houve uma
direita raivosa e de valores autoritários. Desde a democratização ela
estava incubada, mas saiu do armário nos últimos anos, com o advento da
maior crise ética da história do nosso país.
A depender dos dois extremos, novos episódios de violência e de
intolerância acontecerão. Sua escalada só arrefecerá se a política
voltar a se impor como a forma mais civilizada da sociedade equacionar
conflitos e estabelecer consensos.
Hubert Alquéres é professor e membro do Conselho Estadual de
Educação (SP). Lecionou na Escola Politécnica da USP e no Colégio
Bandeirantes e foi secretário-adjunto de Educação do Governo do Estado
de São Paulo.
Recado dado.
Veja
Registe-se aqui com seu e-mail
ConversãoConversão EmoticonEmoticon