Vinte computadores defasados e com pouco acesso à internet. É assim
que o diretor do Centro de Ensino Médio 404, Felipe de Lemos Cabral,
descreve a estrutura de informática à disposião dos alunos da escola,
localizada em Santa Maria, no Distrito Federal (DF). Situada a cerca de
30 quilômetros do centro de Brasília, Santa Maria é uma das regiões
administrativas do DF.
Quando perguntado se os estudantes estariam preparados para fazer o
Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) digital, Cabral diz que nem todos
têm sequer familiaridade com os computadores. “Hoje o aluno está muito
mais inserido via celular. Usam muito a rede social e sabem pouco lidar
com o resto da informação que a internet disponibiliza. Têm pouco acesso
técnico, têm pouca formação do trato com o computador, com coisas
simples como formatar um texto, por exemplo.”
De acordo com o Censo Escolar 2018, 82% das escolas públicas de
ensino médio regular têm laboratório de informática e 94%, acesso à
internet. Cabral ressalta, no entanto, que, como ocorre na escola que
dirige, nem sempre o equipamento é suficiente para atender à demanda.
Além disso, ele destaca que os professores teriam que ser formados para
inserir a tecnologia nas aulas.
“Não é má ideia, não seria ruim [o Enem digital], mas acho que teria
que ter uma preparação maior do sistema para isso”, diz Cabral. Ele teme
que o exame passe a excluir estudantes que não tenham acesso a
computadores, que terão mais dificuldade em fazer as provas. “Pode
dificultar o acesso dos alunos ao exame e, com isso, cair o número de
inscritos”.
Na semana passada, o Ministério da Educação (MEC) anunciou que o Enem
passará a ser feito por computador. Isso ocorrerá gradativamente,
começando no ano que vem com um grupo de 50 mil estudantes. A
digitalização completa está prevista para 2026.
A ideia, que não é nova e busca seguir uma tendência mundial de
modernização, gerou uma série de questionamentos. Segundo especialistas
entrevistados pela Agência Brasil, o MEC terá que enfrentar certos
desafios para implementar a digitalização do Enem. Um dos desafios é a
escassa disponibilidade de infraestrutura das escolas.
Provas criptografadas
Outra questão apontada por especialistas é a segurança do exame. “Tem
que ter certeza de que todos os sistemas, de ponta a ponta, do momento
em que se liga o computador, em que é feita a prova, ao momento em que
as provas são armazenadas e processadas, essas informações sejam
criptografadas. E uma criptografia com uma robustez que não permita que,
através da utilização de outras tecnologias, ela possa ser quebrada”,
alterta o professor Renato Leite, do Data Privacy Brasil.
A criptografia é usada hoje, por exemplo, em aplicativos como o
WhatsApp. Trata-se de transformar o conteúdo em códigos e tornar a
mensagem impossível de ser lida quando armazenada. Apenas o destinatário
final consegue ter acesso ao conteúdo.
Além disso, é preciso usar programas de computador confiáveis. Uma
opção é o uso de softwares livres, cujos códigos são abertos e podem ser
acessados.
De acordo com fundador e também professor do Data Privacy Brasil,
Bruno Bioni, é preciso ainda garantir a proteção dos dados dos
estudantes. “Toda vez que o governo se propõe a se informatizar, a ser
um governo mais eletrônico, e isso envolve quantidade significativa de
processamento de dados, isso deve ser acompanhado com cuidado. Tão
importante quanto avançar nessas pautas de digitalização é mostrar
preocupação com os dados dos cidadãos”, ressalta Bioni.
Ele destaca que, em agosto do ano que vem, entra em vigor a chamada
Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (Lei 13.709/2018). “Uma das
coisas que a lei procura estabelecer é que, quando se está executando
uma política pública como essa, deve-se ter todo um programa de
governança de dados”, acrescenta Bioni. Ele alerta que o MEC deverá ter
transparência quanto ao uso desses dados.
Debate
Para o professor Francisco Soares, membro do Conselho Nacional de
Educação (CNE), a proposta do MEC precisa ainda ser detalhada e colocada
em discussão. Soares era presidente do Instituto Nacional de Estudos e
Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), quando, em 2015, o
Ministério da Educação quis começar a testar o Enem digital. O professor
lembra que, na época, foram feitos apenas estudos “ultrapreliminares”.
“O Enem precisa de mudanças. Uma delas é trazer mais tecnologia. Eu
acho que a iniciativa está em uma direção correta, era desejada, e
tomara que agora seja implementada”, diz Soares. O professor considera
necessárias audiências públicas para que todos os interessados e
especialistas possam contribuir para a elaboração de um bom exame.
“Se vamos mudar, a gente devia mudar para melhorar. O computador dá a
chance de oferecer outro tipo de item. Ter simulações em itens de
ciência, por exemplo. Se essa mudança for simplesmente para turbinar o
velho, não vai adiantar muito. Ela traz possibilidade de uma coisa de
impacto muito muito interessante, mas isso exige tempo”, destaca Soares.
Para o professor, o exame precisa deixar de apresentar apenas
questões de múltipla escolha e incluir também questões discursivas. Além
disso, que use recursos digitais, como vídeos, por exemplo. Isso, de
acordo com o conselheiro, vai ajudar a mudar também a formação dos
estudantes no ensino médio, já que muito do que é ensinado nas escolas é
pautado pelo Enem e por vestibulares.
Soares ressalta também que, na fase de transição, na qual o Enem será
aplicado no formato digital apenas para alguns alunos, é preciso
garantir que os estudantes que optem pela prova digital tenham as mesmas
chances de ser aprovados em uma universidade que aqueles q fizerem a
prova em papel. Para isso, é preciso testar os itens em formato digital.
“Será que um item específico é facilitado ou dificultado pelo fato de
o estudante estar respondendo no computador ou no papel e lápis? Esta
questão é importantíssima. É uma preocupação técnica que não tem como
ser resolvida depois”, enfatiza.
O Enem é elaborado a partir de um banco nacional de itens, que reúne
questões feitas por especialistas para as provas. Cada um dos itens é
pré-testado em aplicações feitas em escolas. O processo é sigiloso, e os
estudantes não sabem que estão respondendo a possíveis questões do
Enem. Isso é feito, atualmente, em papel.
Ministério da Educação
Em entrevista coletiva sobre a infraestrutura das escolas, o ministro
da Educação, Abraham Weintraub, disse acreditar que, até 2026, a
realidade brasileira terá mudado e o acesso a computadores será mais
amplo.
O presidente do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas
Educacionais Anísio Teixeira (Inep), Alexandre Lopes, informou que para a
aplicação da prova poderão ser usadas estruturas de escolas e
universidades, como já é feito hoje para o Enem em papel.
O MEC diz que pretende modernizar o exame, que poderá utilizar
vídeos, infográficos e até mesmo seguir a lógica dos games. As medidas
de segurança que serão tomadas ainda não foram detalhadas.
Recado dado.
Agência Brasil
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