Familiares de mortos e desaparecidos políticos, entre eles as
famílias de Fernando Santa Cruz, Vladimir Herzog e Rubens Paiva, pediram
à Comissão Interamericana de Direitos Humanos que, diante das
declarações do presidente Jair Bolsonaro sobre o pai do presidente da
Ordem dos Advogados do Brasil, que ‘o Estado brasileiro preste
esclarecimentos sobre as circunstâncias do desaparecimento e localização
dos restos mortais de Fernando e que o Estado apresente todas as
informações ainda não reveladas sobre mortes e desaparecimentos
políticos da ditadura que estejam em poder dos seus agentes’.
Na segunda-feira, 29, Bolsonaro disse que ‘um dia’ contaria a Felipe
Santa Cruz, presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, como seu pai,
Fernando, ex-militante da organização Ação Popular (AP), ‘desapareceu no
período militar’.
‘Um dia, se o presidente da OAB quiser saber como é que o pai dele
desapareceu no período militar, eu conto para ele. Ele não vai querer
ouvir a verdade. Eu conto para ele”, disse Bolsonaro. ‘Não é minha
versão. É que a minha vivência me fez chegar às conclusões naquele
momento. O pai dele integrou a Ação Popular, o grupo mais sanguinário e
violento da guerrilha lá de Pernambuco, e veio a desaparecer no Rio de
Janeiro’, afirmou o presidente.
A fala de Bolsonaro provocou reação em cadeia na advocacia em todo o
País. Na quinta, 1, a OAB protocolou no Supremo interpelação de
Bolsonaro para que esclareça o que sabe sobre o desaparecimento de
Fernando. O pedido é subscrito por Felipe e por 12 ex-presidentes da
entidade.
Leia ofício na íntegra
À Excelentíssima Senhora Relatora sobre Memória, Verdade e Justiça e
Relatora para o Brasil da Comissão Interamericana de Direitos Humanos,
Comissária Antonia Urrejola, e ao Excelentíssimo Secretário Executivo da
Comissão Interamericana de Direitos Humanos, Senhor Paulo Abrão.
São Paulo, 1 de agosto de 2019
Ref.: Declarações do Presidente da República do Brasil referentes ao
desaparecimento forçado de Fernando Santa Cruz e desmonte da Comissão
Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP)
Nós, familiares de Fernando Santa Cruz e parentes de mortos e
desaparecidos políticos da ditadura militar no Brasil (1964-1985) vimos
por meio desta carta apresentar informações importantes para o
monitoramento, por essa Relatoria, da situação dos direitos humanos no
Brasil na área Memória, Verdade e Justiça. Ao final, fazemos pedidos que
entendemos fundamentais para a promoção e proteção dos direitos humanos
no Brasil, bem como para a devida reparação aos familiares de Fernando
Santa Cruz.
Recebemos com profunda indignação e preocupação as recentes
declarações feitas pelo presidente da República, Jair Bolsonaro, sobre
Fernando Santa Cruz, desaparecido político durante a ditadura militar
(1964-1985). Em 29 de julho deste ano, conforme amplamente divulgado
pela imprensa brasileira,[1] Bolsonaro disse que ‘um dia’ contaria a
Felipe Santa Cruz, que é presidente da Ordem dos Advogados do Brasil
(OAB), como seu pai, Fernando, ex-militante da organização Ação Popular
(AP), ‘desapareceu no período militar’. ‘Um dia, se o presidente da OAB
quiser saber como é que o pai dele desapareceu no período militar, eu
conto para ele. Ele não vai querer ouvir a verdade. Eu conto para ele”,
disse Bolsonaro. ‘Não é minha versão. É que a minha vivência me fez
chegar às conclusões naquele momento. O pai dele integrou a Ação
Popular, o grupo mais sanguinário e violento da guerrilha lá de
Pernambuco, e veio a desaparecer no Rio de Janeiro’, afirmou.
Em momento posterior no mesmo dia, em transmissão em rede social
durante corte de cabelo, como que em deboche com o sofrimento dos
familiares, o presidente disse que Fernando Santa Cruz foi morto pelo
“grupo terrorista” Ação Popular do Rio de Janeiro, e não pelos
militares.[2] Essas gravíssimas declarações do presidente contrariam as
informações de documentos da própria ditadura, que fundamentaram a
conclusão, por diferentes órgãos do Estado brasileiro, de que Fernando
foi assassinado sob a responsabilidade do Estado.
Fernando nasceu em Recife (PE). Militou no movimento estudantil e
participou da Juventude Universitária Católica (JUC), depois integrou a
Ação Popular (AP), organização de esquerda de oposição à ditadura. Ele
desapareceu em um encontro que teria no Rio de Janeiro, em 1974, com um
companheiro de organização, Eduardo Collier Filho. Ambos foram presos em
Copacabana por agentes do DOI-CODI-RJ, em 23 de fevereiro daquele ano,
como consta no relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV).
De acordo com o relatório da CNV, Fernando Augusto de Santa Cruz
Oliveira foi “preso e morto por agentes do Estado brasileiro” em 1974.
Ainda segundo a comissão, Santa Cruz “permanece desaparecido, sem que os
seus restos mortais tenham sido entregues à sua família”.[3] O
relatório final da comissão diz ainda que Claudio Guerra, ex-delegado do
Departamento de Ordem Política e Social (DOPS-ES), afirmou em
depoimento em 2014 que o corpo de Fernando Santa Cruz Oliveira foi
incinerado na Usina Cambahyba, em Campos dos Goytacazes (RJ).
Quase 30 anos antes, o Estado brasileiro já havia reconhecido sua
responsabilidade pelo desaparecimento de Fernando por meio da Lei n.
9140/1995, em que seu nome consta do anexo 1.
Em 1997, a Justiça Federal decidiu que a União foi responsável pelo
“sequestro, tortura, assassinato e ocultamento do corpo de Fernando
Augusto de Santa Cruz Oliveira”, assim como considerou “injuriosas” as
insinuações da Advocacia da União de que, talvez, o militante da Ação
Popular (AP) estivesse vivo. O juiz José Carlos Garcia, autor da
sentença mandou que as expressões usadas pela advocacia fossem “riscadas
dos autos, por atentatórias à dignidade do autor (Felipe Santa Cruz,
atual presidente da OAB) e à memória de seu pai”.[4]
Fernando Augusto de Santa Cruz Oliveira teve o pedido de anistia
deferido pela Comissão de Anistia, conforme portaria publicada em
janeiro de 2013 pelo Ministério da Justiça. Além disso, a família foi
indenizada pela Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos
no processo 243/1996. Fernando consta ainda como desaparecido político
no livro Direito à Memória e à Verdade, de 2007, elaborado por essa
Comissão.
Em 24 de julho de 2019, dias antes das recentes declarações de
Bolsonaro, foi expedida a retificação do atestado de óbito de Fernando,
pela Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP),
hoje ligada ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos.
Diz o documento que ele morreu provavelmente em 23 de fevereiro de 1974,
no Rio, ‘em razão de morte natural, violenta, causada pelo Estado
brasileiro, no contexto da perseguição sistemática e generalizada à
população identificada como opositora política ao regime ditatorial de
1964 a 1985’. Mencionando esse documento, a então presidente da CEMDP e
Procuradora da República, Eugênia Augusta Gonzaga, criticou as
declarações do Presidente da República sobre o desaparecimento de
Fernando, e afirmou: “Ele dizer que sabe e usar isso, é uma forma de
reiterar a tortura dos familiares”.[5]
A mãe de Fernando, Elzita Santa Cruz, morreu em 25 de junho de 2019.
Durante 45 anos, dona Elzita cobrou notícias em quartéis, gabinetes de
presidentes e de outras autoridades e junto a Organizações Não
Governamentais, inclusive do exterior sempre insistindo com a frase:
‘Onde está meu filho?’. Dizia que não tinha ânsia de encontrar quem
matou Fernando; queria o direito de enterrá-lo. “É uma dor muito grande
porque o único crime que ele [Fernando] cometeu foi defender a igualdade
social, essas coisas pelas quais eu luto até hoje”, afirmou em 2009,
enquanto pedia providências ao então presidente Luiz Inácio Lula da
Silva. Elzita, assim como dezenas de mães e familiares de desaparecidos
políticos, dedicou sua vida à busca pelos restos mortais de Fernando.
Seus irmãos e filho seguem dando continuidade a essa busca, 45 anos
depois do desaparecimento.
Assim, não pode haver mais dúvidas de que Fernando Santa Cruz foi
vítima de desaparecimento forçado, praticado sob responsabilidade do
Estado brasileiro. A declaração, feita pelo Presidente, de que Fernando
Santa Cruz teria sido morto pelo “grupo terrorista” Ação Popular do Rio
de Janeiro é falsa e ofensiva à memória de Fernando e a seus familiares.
Por outro lado, a notícia de que o chefe do Poder Executivo no Brasil
tem informações adicionais sobre as circunstâncias do desaparecimento
gera o dever de esclarecer, em atenção às obrigações internacionais do
País.
Cabe lembrar que em 2010 o Brasil foi condenado pela Corte
Interamericana de Direitos Humanos, no chamado caso da “Guerrilha do
Araguaia” (Gomes Lund e outros vs. Brasil, sentença de 24 de novembro de
2010) pela prática de desaparecimentos forçados durante a ditadura
militar. Conforme o exposto no parágrafo 103 da Sentença da Corte
Interamericana nesse caso, o desaparecimento forçado é violação grave de
direitos humanos de caráter continuado e permanente: “o ato de
desaparecimento e sua execução se iniciam com a privação da liberdade da
pessoa e a subseqüente falta de informação sobre seu destino, e
permanece enquanto não se conheça o paradeiro da pessoa desaparecida e
se determine com certeza sua identidade (…)”. Além disso, a Corte
afirmou que “a privação do acesso à verdade dos fatos constitui uma
forma de tratamento cruel e desumano para os familiares próximos” (par.
240). Em 2018 o Brasil foi novamente condenado no Caso Herzog e outros,
em que a Corte constatou que, durante a ditadura militar, houve por
parte do Estado “um plano de ataque sistemático e generalizado contra a
população civil considerada ‘opositora’ à ditadura” (par. 241), em que
se eram praticados crimes contra a humanidade.
Confirmando a intenção do governo brasileiro de atacar a memória e a
verdade sobre as graves violações de direitos humanos e crimes contra a
humanidade praticados durante a ditadura militar no Brasil, e de
desconstruir as políticas de reparação implementadas no País, na data de
hoje, 1 de agosto de 2019, foi publicada no Diário Oficial a exoneração
e substituição da presidente da CEMDP e Procuradora da República,
Eugênia Augusta Gonzaga, e de outros três integrantes da Comissão. A
mudança ocorre três dias depois de a Comissão ter reafirmado a
responsabilidade do Estado brasileiro pelo desaparecimento de Fernando
Santa Cruz, em evidente retaliação. Conforme divulgado pela imprensa, o
Presidente da República afirmou que “O motivo [é] que mudou o
presidente, agora é o Jair Bolsonaro, de direita. Ponto final. Quando
eles botavam terrorista lá, ninguém falava nada. Agora mudou o
presidente”.[6] Cabe lembrar que a CEMDP é o órgão responsável pela
reparação das mortes e desaparecimentos ocorridos durante a ditadura, e
pela investigação, localização e identificação das pessoas
desaparecidas.
Diante do exposto, apresentamos a essa Ilustre Comissão os seguintes requerimentos:
1 – Considerando que o Presidente da República declarou possuir
informações sobre o desaparecimento de Fernando Santa Cruz além daquelas
que já são de conhecimento dos familiares, que seja expedido um pedido
de informações endereçado ao Estado brasileiro, para: a) que preste
esclarecimentos sobre as circunstâncias do desaparecimento e localização
dos restos mortais de Fernando, em atenção ao direito à verdade e ao
luto dos familiares, e b) que o Estado apresente todas as informações
ainda não reveladas sobre mortes e desaparecimentos políticos da
ditadura que estejam em poder dos seus agentes;
2 – Considerando que as declarações do Presidente da República
prejudicam o conhecimento e a memória da sociedade brasileira sobre as
graves violações de direitos humanos praticadas durante a ditadura
militar e, consequentemente, a sua capacidade de evitar a repetição das
violações, e considerando seu caráter ofensivo à memória de Fernando
Santa Cruz, bem como o sofrimento que provoca nos familiares; e
considerando que a presidente e três outros integrantes da CEMDP foram
exonerados, ao que tudo indica em razão de a Comissão reafirmar a
responsabilidade do Estado brasileiro pela morte de Fernando, que seja
feita e divulgada por essa Ilustre Comissão uma nota de repúdio às
declarações e ao desmonte da CEMDP, que reafirme a importância da
garantia dos direitos à memória, verdade, justiça e reparação referentes
às graves violações de direitos humanos praticadas durante a ditadura
militar.
3 – Considerando que foi feita uma denúncia contra o Estado
brasileiro sobre os desaparecimentos de Fernando e Eduardo Collier Filho
(Petição 1844), em relação à qual não se tem notícia de deliberação por
essa Ilustre Comissão, que: a) sejam fornecidas informações à família
de Fernando Santa Cruz sobre os seus desdobramentos; b) que seja anexada
ao caso a presente carta, de maneira que nele sejam analisadas as
violações graves de direitos humanos praticadas até o presente, de forma
continuada e permanente, pelo Estado brasileiro; e c) que seja incluído
na denúncia o pedido de que, entre as reparações devidas pelo Estado à
família Santa Cruz, seja determinado que o Estado brasileiro peça
desculpas pelo sofrimento causado, tanto com a falta de esclarecimentos
sobre o desaparecimento, quanto pelas novas declarações do Presidente.
Rosalina Santa Cruz
Marcelo Santa Cruz
Maria Amélia de Almeida Teles
Crimeia Alice Schmidt de Almeida
Suzana Keniger Lisboa
Laura Petit
Tatiana Merlino
Angela Mendes de Almeida
Nicolau Bruno de Almeida Leonel
Ivo Herzog
Clarice Herzog
Adriano Diogo
João Carlos Schmidt de Almeida Grabois
Maria do Amparo Araújo
Edson Teles
Janaína Teles
Vera Paiva
Marcelo Paiva
Cloves Petit de Oliveira
Mariluce Moura
Tessa Moura Lacerda
Zodja Pereira
Maria Helena Soares de Souza
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