O porteiro mais comentado do Brasil finalmente tem nome e endereço.
Ele se chama Alberto Jorge Ferreira Mateus e mora na Gardênia Azul,
bairro fincado em área dominada por milícias na Zona Oeste do Rio de
Janeiro. VEJA o localizou às 17 horas de segunda-feira 4, quando ele
apareceu na porta de casa, um sobrado amplo e sem pintura, de shorts,
chinelo e camiseta do Flamengo. Assim que a reportagem se identificou, o
sorriso despreocupado com que o porteiro se aproximou sumiu. “Eu não
estou podendo falar nada. Não posso falar nada”, disse, virando as
costas e fechando a porta. Alberto Mateus ficou famoso, ainda sem nome
nem endereço, na última semana de outubro, quando o Jornal Nacional divulgou
os dois depoimentos dele à Polícia Civil do Rio de Janeiro afirmando
que no dia do assassinato da vereadora Marielle Franco e de seu
motorista Anderson Gomes, em 14 de março do ano passado, um dos acusados
pelo crime, o ex-policial militar Élcio Queiroz, parou na cancela do
condomínio em que ele trabalha, o Vivendas da Barra, e lhe disse que ia
visitar a casa 58, onde vivia seu mais famoso morador: o então deputado
federal Jair Bolsonaro, candidato à Presidência. A versão cairia por
terra em menos de 24 horas. Ele mentira.
Na rua da Gardênia Azul onde Alberto Mateus mora com a mulher há 32
anos e onde criou o casal de filhos, ninguém dá palpite sobre o motivo
que o teria levado para o olho de um furacão envolvendo o presidente da
República. Moradores e comerciantes do local, uma via calma de mão dupla
por onde circulam motos e carros em péssimo estado, demoraram a saber
que aquele sujeito calvo, alto, magro e discreto, que não frequenta
bares nem festas e nos fins de semana é visto sempre a caminho da
igreja, com uma Bíblia nas mãos, era porteiro do condomínio
Vivendas da Barra. Um cunhado, que não quis se identificar, conta que
boa parte da família só descobriu na reta final da eleição do ano
passado, quando o porteiro foi filmado por uma equipe de TV na entrada
onde o público se aglomerava. “A gente brincou que ele estava famoso. O
Beto é do tipo que sai cedo para trabalhar e não comenta nada”, disse.
Ultimamente, segundo o cunhado, anda mais calado ainda: “Não sei se
alguém importante mandou ele não falar. Quando alguma pessoa chega perto
e toca no assunto, ele foge”.
À polícia, o porteiro contou que, enquanto Queiroz esperava na
cancela, ele acionou o interfone e foi atendido por “seu Jair”, que
autorizou a entrada. Anotou o endereço no livro de registro, como é de
praxe, e abriu a cancela. Ao observar pelas câmeras de segurança que o
carro não seguiu para o número 58, mas para o 65, falou pela segunda vez
com “seu Jair”, que, sempre de acordo com o depoimento do porteiro,
disse que sabia do desvio. Confrontado com uma gravação do diálogo
arquivado no computador do condomínio, em que não havia nem menção à
casa 58, nem comunicação com “seu Jair” e nem mesmo registro da sua voz —
o porteiro que fala tem outro tom —, Alberto Mateus insistiu na sua
versão do acontecido, sem explicar a discrepância.
O dono da casa 65 é o também ex-PM Ronnie Lessa, o outro acusado de
matar Marielle (Queiroz teria dirigido o carro e ele, puxado o gatilho).
O encontro da dupla, quatro horas antes do crime, é peça crucial na
reconstituição do caso. Ao envolver “seu Jair” no enredo, ainda mais em
um dia em que o deputado estava comprovadamente em Brasília — como o
próprio Jornal Nacional apontou —, o porteiro identificado por
VEJA criou uma enorme confusão, por motivo até agora não esclarecido, já
que não voltou a ser convocado pela polícia para dar explicações.
Aparentemente tranquilo nos dias seguintes aos seus depoimentos,
prestados em 7 e 9 de outubro, durante seu período de férias, ele foi
ficando nervoso à medida que a repercussão crescia. Deveria ter voltado
ao posto em 1º de novembro, mas, diante da divulgação do depoimento três
dias antes, o condomínio optou por prorrogar a licença e mantê-lo
afastado do local até a poeira baixar. Cinco dias depois, no domingo 27,
Alberto Mateus foi visto na praia, ajudando a mulher, que tem uma
barraca onde vende cervejas e refrigerantes a 2 quilômetros do Vivendas.
“Ele comentou o caso com a gente muito por alto. Acho que não tinha
dimensão do que estava acontecendo”, disse a VEJA o dono de uma barraca
próxima, que não quis se identificar. Hoje, segundo familiares, o
porteiro está “feito um animal acuado”.
Diante da referência a “seu Jair”, o Ministério Público estadual
encaminhou ao Supremo Tribunal Federal uma consulta sobre como deveria
proceder e ficou aguardando resposta. A divulgação do depoimento do
porteiro Alberto foi acompanhada de reação irada de Bolsonaro (que
estava em viagem ao Oriente Médio), que atacou a imprensa e o governador
fluminense Wilson Witzel, a quem responsabilizou pelo vazamento porque
quer disputar a Presidência em 2022. Preocupado, o MP foi de novo ao
STF, dessa vez pedindo autorização para providenciar uma perícia
urgentíssima do áudio em poder da polícia e afastar qualquer suspeita de
que ele pudesse ter sido adulterado. No dia seguinte, as promotoras
encarregadas do inquérito anunciaram em entrevista coletiva o resultado
da perícia: o áudio estava intacto e nele se ouve que Queiroz disse que
ia à casa 65, a do comparsa Lessa. E a voz da pessoa que o atendeu não
era a do porteiro àquela altura ainda sem nome. O filho do meio de
Bolsonaro, o vereador Carlos — que também mora no condomínio, na casa 36
—, divulgou nas redes sociais trechos da conversa, um ato controvertido
por levantar a questão de como teve acesso ao material arquivado no
computador da portaria. Antes dele, Bolsonaro havia dito que “nós
pegamos (o áudio) antes que fosse adulterado”. Carlos explicou
que foi até o computador, pediu para tocar a conversa e a gravou —
alegando que, como morador, tinha direito de fazer o que fez.
Quem, afinal, atendeu Queiroz quando ele parou na cancela? Até
quinta-feira 7, a polícia não tinha ido atrás dessa informação, mas VEJA
encontrou a resposta: foi o porteiro Tiago Izaias. A reportagem
reproduziu para ele o áudio divulgado por Carlos Bolsonaro. “A voz é
minha”, confirmou. O procedimento normal no Vivendas da Barra é manter
dois porteiros na entrada, um na cabine e outro na cancela, mas Izaias
diz que não se recorda com quem trabalhava no dia 14 de março de 2018.
“Não lembro nem se estava dentro ou fora. A coisa toda aconteceu há
tempos, e são muitas casas e visitantes o dia inteiro.” Izaias contou
que, ao saber do depoimento do colega, tentou falar com ele por
aplicativo de mensagem, para obter “a informação verdadeira”, mas não
recebeu resposta. “Todos aqui no condomínio ficaram surpresos por ele
ter ligado o presidente a um crime gravíssimo. Pode ser que estejam
usando o Alberto para denegrir a imagem de Bolsonaro”, arriscou Izaias,
que ostenta orgulhoso uma foto ao lado do capitão em suas redes sociais.
No condomínio francamente bolsonarista, o próprio Alberto não escondia
sua simpatia pelo presidente.
O sobrado em que Alberto Mateus vive, parecido com os outros da rua,
tem dois andares e terraço. Quinze parentes convivem em cinco pequenos
apartamentos de dois quartos, e no térreo, onde o portão costuma ficar
aberto, membros da família mantêm uma oficina de carros improvisada. Um
pequeno cartaz pregado no muro avisa que ali se vendem sacolés a 1,50
real. Os acontecimentos dos últimos dias perturbaram a vida no imóvel.
“Está todo mundo nervoso. Eu mesma estou tendo que tomar remédio para a
pressão”, contou uma das tias da mulher do porteiro. Outro parente, que
também pediu anonimato, diz que está temeroso: “Ele é uma pessoa do bem,
nunca se meteu com coisa que não presta. Depois de muito tempo
desempregado, conseguiu esse serviço no condomínio. Agora está com muito
medo de perder o emprego e até de morrer”. Já aposentado pelo INSS, o
porteiro é um dos funcionários mais antigos do Vivendas da Barra — está
lá há treze anos.
O bairro da Gardênia Azul tem perto de 18 000 moradores em 6 500
domicílios, e no Índice de Desenvolvimento Humano aparece em 106º lugar
entre as 126 regiões analisadas no município do Rio de Janeiro. A
Gardênia Azul fica próxima à favela da Cidade de Deus e é reduto das
milícias que atuam na Zona Oeste carioca. O local já estava no radar dos
policiais que investigam o assassinato de Marielle porque há indícios
de que um dos mandachuvas ali seja justamente Ronnie Lessa, acusado de
dar os tiros que mataram a vereadora. Um relatório policial sobre buscas
feitas pelo ex-PM na internet, ao qual VEJA teve acesso, faz menção à
“influência” dele no bairro. Lessa também procurou informações sobre a
prisão de dois milicianos da área e, em outra ocasião, fez uso das
palavras-chave “casal morto na Gardênia Azul”, em referência a um
episódio ocorrido em 2014. “Segundo fontes humanas, os crimes teriam
sido executados pelo próprio Ronnie Lessa”, diz o relatório. Ao saberem
que os caminhos de Alberto e Lessa se cruzam na Gardênia, moradores do
Vivendas da Barra levantaram a possibilidade de o porteiro ter se
dobrado à pressão do miliciano ao sustentar que o comparsa dele,
Queiroz, ia visitar a casa do presidente. “Todo mundo sabe como funciona
o esquema da milícia. Seu Alberto pode ter protegido o Ronnie por
ameaça, medo”, diz um deles. Lessa e Queiroz estão presos na
penitenciária federal de Rondônia.
A casa 65 que Lessa alugava no Vivendas da Barra está vazia e
fechada. Os aparelhos de ar condicionado foram removidos. A associação
com a morte da vereadora e do motorista preocupa os moradores do
condomínio, que temem ver os imóveis desvalorizados. “O lugar ficou
malvisto, associado à milícia”, disse um proprietário. Mesmo assim, em
um ato de solidariedade para com um funcionário antigo, solícito e
considerado de confiança, foi convocada uma assembleia extraordinária
para discutir a proposta de que as 135 casas se cotizem para pagar um
advogado para o porteiro Alberto Mateus.
Nossa...
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