O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) gastou
R$ 48 milhões com uma auditoria interna que prometia abrir a
caixa-preta da estatal. Após um ano e 10 meses de investigação, o banco
divulgou, no fim de dezembro, um relatório que não apontou nenhuma
evidência direta de corrupção em oito operações com a JBS, o grupo
Bertin e a Eldorado Brasil Celulose, realizadas entre 2005 e 2018.
O valor foi pago a um escritório estrangeiro, o Cleary Gottlieb Steen
& Hamilton LLP, que subcontratou outro brasileiro, o Levy &
Salomão. O BNDES não revela quantos funcionários trabalharam na
auditoria nem quais critérios foram utilizados para fazer o pagamento
pelo trabalho. O relatório tem oito páginas. Seria como se cada folha
custasse R$ 6 milhões.
Depois que a reportagem foi publicada, a assessoria de imprensa do
BNDES entrou em contato com a reportagem para informar que, além do
relatório de oito páginas, a auditoria entregou outro documento, “mais
robusto”, às autoridades, que decidirão se usam o material. A assessoria
do banco não quis, porém, dizer quantas páginas tem o outro documento,
cujo teor não é público.
No parecer de oito páginas, a equipe de investigação concluiu que as
decisões do banco “parecem ter sido tomadas depois de considerados
diversos fatores negociais e de sopesados os riscos e potenciais
benefícios para o banco”. “Os documentos da época e as entrevistas
realizadas não indicaram que as operações tenham sido motivadas por
influência indevida sobre o banco, nem por corrupção ou pressão para
conceder tratamento preferencial à JBS, à Bertin e à Eldorado”, diz
trecho do relatório.
A abertura da caixa-preta foi uma das missões conferidas por Jair
Bolsonaro ao presidente do BNDES, Gustavo Montezano, que tomou posse em
julho, em substituição a Joaquim Levy, primeiro nomeado pelo governo
para comandar a instituição. Ele se juntou a outros executivos que
passaram pelo banco após o fim da gestão Dilma Rousseff e tiveram
dificuldades para comprovar irregularidades na concessão dos
financiamentos.
No governo Temer, Maria Silvia Bastos Marques evitou o assunto. Paulo
Rabello de Castro e Dyogo Oliveira negaram sua existência. “Ou sou um
completo idiota ou não existe caixa-preta no BNDES”, chegou a dizer
Rabello.
Levy falou em “ter clareza sobre operações do passado”, mas não
chegou a avançar na busca por operações fraudulentas. A dificuldade foi
apontada como um dos motivos para a insatisfação de Bolsonaro com sua
gestão – o executivo pediu demissão após o presidente dizer em
entrevista que estava “por aqui” com ele.
A caixa-preta foi um dos temas dominantes na campanha de Bolsonaro.
Para muitos apoiadores do presidente, a sua abertura teria potencial
para malfeitos maiores do que os descobertos pela Operação Lava Jato na
Petrobrás.
Logo após a vitória nas urnas, o presidente eleito se comprometeu a
determinar, no início do mandato, “a abertura da caixa-preta do BNDES e
revelar ao povo brasileiro o que foi feito com seu dinheiro nos últimos
anos”.
O ex-economista-chefe da Federação Brasileira de Bancos (Febraban)
Roberto Luis Troster afirma que operações importantes do banco com esses
grupos não foram exploradas no “relatório milionário”, embora tenham
sido investigadas pela auditoria. Ele cita como exemplo a aquisição da
Swift Armour, conhecida como Swift Argentina.
A operação foi fechada em 2005 e é considerada o pontapé inicial da
internalização da JBS, que, na época, ainda era conhecida como Friboi. A
Swift exportava para 70 países, sendo os Estados Unidos seu maior
mercado. Troster diz que o BNDES financiou R$ 187,5 milhões para o grupo
fechar essa operação.
Em seguida, houve desembolsos de R$ 1,14 bilhão em ações da JBS para
financiar a aquisição da Swift Foods nos Estados Unidos, em 2008, e um
aporte de R$ 995,9 milhões para auxiliar a aquisição das empresas
National Beef e Smithfield nos Estados Unidos, todas as operações antes
de 2010. “Faltou essa auditoria de R$ 48 milhões explicar os porquês
dessas operações”.
Contratos secretos
O termo caixa-preta começou a ser utilizado para se referir ao BNDES
ainda em 2008, quando uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF)
restringiu o acesso do Tribunal de Contas da União (TCU) a informações
do Banco Central (BC) protegidas pelo sigilo bancário. Até então, o
BNDES concedia as informações protegidas por sigilo bancário ao TCU. Com
o posicionamento do STF em relação ao BC, o BNDES entendeu que, se
continuasse a conceder ao TCU acesso a informações protegidas por sigilo
bancário, isso poderia gerar questionamentos legais para o banco e seus
empregados.
Em 2014, o TCU requereu uma série de documentos e o BNDES decidiu
entrar com um mandado de segurança no STF a fim de proteger o sigilo
bancário em algumas situações, como saldo devedor das operações de
crédito, cadastro das empresas, rating de crédito e estratégia
empresarial. O TCU, por sua vez, entendia que o BNDES não poderia alegar
sigilo bancário para não lhe passar esses itens, uma vez que as
operações do Banco envolvem recursos públicos.
No ano seguinte, o STF decidiu que o BNDES era obrigado a informar ao
TCU os dados completos das operações de crédito, transferindo a esse
órgão de controle a obrigação de sigilo bancário. O BNDES acatou a
decisão da Suprema Corte e a instituição voltou a apresentar informações
requeridas ao TCU.
Outro fato que contribuiu para a associação do termo caixa-preta ao
BNDES ocorreu em 2012, quando o então Ministério do Desenvolvimento,
Indústria e Comércio Exterior (MDIC), ao qual o BNDES era subordinado,
decidiu classificar os contratos de financiamento à exportação de bens e
serviços de engenharia para Cuba e Angola como “secretos”, sob o
argumento de que possuíam informações estratégicas. Esse fato até hoje é
desconhecido de grande parte da opinião pública, que atribui ao BNDES
tal decisão.
Três anos depois, em 2015, a classificação de “secreto” dos contratos
foi cancelada pelo próprio MDIC. No mesmo ano, os extratos dos
contratos, com as condições financeiras (valor, taxa de juros, prazo e
garantias) passaram a ser disponibilizados no site do BNDES. Atualmente,
todos os contratos de financiamentos à exportação de bens e serviços de
engenharia estão disponíveis na íntegra no site da instituição.
Cobrança por transparência
O contrato com a Cleary foi formalizado em julho de 2015, na primeira
gestão do governo Dilma Rousseff. Ao analisar a concorrência 01/2014,
no entanto, vencida pela empresa, é possível verificar que o objetivo do
BNDES era contratar consultoria internacional na área do direito e do
comércio de aviões. Ou seja, a contratação da empresa Gottlieb Steen
& Hamilton LLP não teria ocorrido, inicialmente, com a finalidade de
realizar auditoria.
O que aconteceu foi que, a partir de 2018, o BNDES começou a sofrer
pressão da sociedade e dos governos para que revelasse quem eram os
beneficiados por seus financiamentos. O banco também era cobrado por
mais transparência. Nesse contexto, a instituição prometeu realizar uma
auditoria interna, aproveitando o contrato de 2014, para fazer os
trabalhos de auditoria.
Com vigência de 30 meses, o contrato firmado em 2015 tinha valor
previsto inicialmente de R$ 14 milhões. Foi prorrogado por igual período
para que a empresa pudesse realizar a auditoria, que foi concluída no
fim de 2019.
O banco confirmou ao Estado que o valor de R$ 48 milhões foi o custo
total do BNDES com “todo o processo de investigação independente”.
BNDES.
Estadão
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