A Polícia Federal afirmou ao Supremo Tribunal Federal (STF) que uma milícia digital que atua contra a democracia e as instituições usa a estrutura do chamado "gabinete do ódio" — grupo que seria formado por aliados do presidente Jair Bolsonaro e que atuaria até mesmo dentro do Palácio do Planalto.
A informação consta em
um relatório parcial elaborado pela delegada Denisse Ribeiro — que conduz os
inquéritos das fake news e das milícias digitais — e enviado ao ministro do
Supremo Alexandre de Moraes.
O inquérito que
apura a existência de uma milícia digital foi aberto em 2021, depois que o
procurador-geral da República, Augusto Aras pediu o arquivamento de outra
investigação que envolvia aliados do presidente Jair Bolsonaro. Na época,
Moraes atendeu ao pedido de Aras, mas decidiu abrir um novo inquérito para
investigar a atuação de milícias digitais.
Segundo a PF, a ação do grupo seria orquestrada com propósito de
difundir ataques e desinformação, criando e deturpando dados para obter
vantagens e auferir lucros, buscando, assim, ganhos políticos, ideológicos e
financeiros.
“Identifica-se a atuação de uma estrutura que opera especialmente por
meio de um autodenominado 'gabinete do ódio': um grupo que produz conteúdos
e/ou promove postagens em redes sociais atacando pessoas (alvos) – os
'espantalhos' escolhidos – previamente eleitas pelos integrantes da
organização, difundindo-as por múltiplos canais de comunicação, em atuação
similar à já descrita outrora pela Polícia Federal, consistente no amplo
emprego de vários canais da rede mundial de computadores, especialmente as
redes sociais”, escreveu.
Denisse afirma também que a suposta milícia digital atua de forma
anônima e tem como alvos adversários políticos, ministros do STF, integrante do
próprio governo e dissidentes, além da imprensa tradicional. Para a PF, a ação
do grupo estimula a polarização e o acirramento do debate com os ataques à
imprensa.
Para a delegada, a diferença entre manifestação de opinião e a conduta
criminosa "é o nítido propósito de manipular a audiência distorcendo
dados, levando o público a erro e induzindo-o a aceitar como verdade aquilo que
não possui lastro na realidade".
“O cruzamento de dados adquiridos mediante quebra de sigilo legal, as
oitivas e os documentos obtidos permitem identificar a estrutura montada, os
papéis de seus membros e os objetivos buscados, os quais são até aqui
indicadores de uma atuação orquestrada, que pratica os fatos descritos com o
propósito de difundir os ataques e/ou desinformação, criando ou deturpando os
dados para obter vantagens para o próprio grupo ideológico e auferir lucros
diretos ou indiretos por canais diversos”, afirmou.
A delegada defende que a estratégia do grupo tem sido explorar os
limites entre crimes contra a honra e a liberdade de expressão. Com isso,
segundo ela, é criada uma falsa ideia de que a Constituição permite a
publicação de qualquer conteúdo sem que o autor seja responsabilizado.
“Sob essa ótica, tem sido rotineiro questionar os limites entre a
prática dos chamados delitos de opinião (especialmente calúnia e difamação) e a
amplitude da liberdade de expressão, gerando uma ideia de que a Constituição
Federal criou uma zona franca para a produção e divulgação de qualquer conteúdo
sem risco de responsabilização. Não é o que ocorre com qualquer Estado
Democrático de Direito”, afirmou.
Denisse Ribeiro defendeu que é preciso proteger o discurso livre.
“É justamente para proteger o discurso livre e aberto que se torna
necessário estabelecer a 'nota de corte' a partir da qual se encerra a
liberdade de expressão e se inicia a prática ilícita”, disse.
A delega detalhou algumas etapas
seguidas pela organização para cometer os crimes, são elas:
- eleição de uma pessoa que será o alvo;
- elaboração de um conteúdo ofensivo e a
separação de tarefas entre os envolvidos;
- ataque em si: ou seja, a publicação
sistemática de informações ofensivas, inverídicas ou deturpadas, por
várias fontes e canais;
- uso
de múltiplas plataformas para reproduzir o material.
A PF identificou ainda o uso de robôs para potencializar as mensagens
difundidas.
Cloroquina
A Polícia Federal afirma também que algumas ações realizadas pelo
presidente e seu entorno, embora não sejam crime, demonstram a articulação do
grupo para criar e impulsionar notícias sabidamente falsas, como, por exemplo,
a propagação do uso da kit Covid para combater o coronavírus.
“A análise em curso aponta também para existência de eventos que, embora
não caracterizem por si tipos penais específicos, demonstram a preparação e a
articulação que antecedem a criação e a repercussão de notícias não lastreadas
ou conhecidamente falsas a respeito de pessoas ou temas de interesse. Como exemplo,
entre outros, pode-se citar a questão do tratamento precoce contra a COVID-19
com emprego de hidroxicloroquina/cloroquina e azitromicina, bem como a menção à
elaboração de dossiês contra antagonistas e dissidentes, inclusive com
insinuação de utilização da estrutura de Estado para atuar 'investigando
todos'", afirmou.
Próximos passos
No
relatório, a delegada avalia ainda que as investigações devem ter continuidade
diante dos vários elementos reunidos que indicam possíveis crimes.
Denisse Ribeiro defendeu que novas diligências devem ser realizadas,
além de depoimentos, cruzamentos de dados, entre outras medidas. Ela sugeriu
também que as vítimas identificadas sejam comunicadas para que possam
eventualmente acionar a Justiça.
A delegada disse ainda que, como a investigação envolve a suposta atuação de organização criminosa, também estão em análise dados relacionados a outras investigações que atingem o presidente Jair Bolsonaro, como a live com informações falsas sobre as urnas eletrônicas e o vazamento de dados sigilosos.
“Como dito, todos esses eventos possuem correlação e revelam semelhança no
modo de agir, bem como aderência ao escopo descrito na hipótese criminal”.
O relatório parcial foi enviado nesta quinta-feira (10), pois a
delegada se afastará do caso por motivos pessoas a partir desta segunda (14).
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