Na terça-feira 4 de julho de 1995, o deputado federal Jair Bolsonaro
deixou o apartamento em que morava na Tijuca, bairro do Rio de Janeiro,
por volta das 8 horas da manhã. Pretendia panfletar na Zona Norte na
busca da reeleição. No caminho, ao parar em um semáforo na altura de
Vila Isabel, foi abordado por dois bandidos armados. Levaram a moto, uma
Honda Sahara de 350 cilindradas seminova, e a pistola Glock calibre 380
que tinha debaixo da jaqueta. No dia seguinte, Bolsonaro apareceu na
imprensa dizendo ter se sentido indefeso no momento do assalto.
Vinte e três anos depois, o presidenciável Bolsonaro foi instado por
um jornalista a explicar, durante o programa Roda viva, há duas semanas,
se não via certa contradição entre a ocorrência dos anos 1990 e a
intenção de facilitar acesso ao porte de armas caso eleito. “Eu fui
assaltado, sim, eu estava em uma motocicleta, fui rendido, dois caras,
um desceu e me pegou por trás, o outro pela frente”, iniciou o
entrevistado. “Dois dias depois, juntamente com o 9º Batalhão da Polícia
Militar, nós recuperamos a arma e a motocicleta e por coincidência —
não é? — o dono da favela lá de Acari, onde foi pega… foi pego lá, lá
estava lá, ele apareceu morto, um tempo depois, rápido.”
Ele continuou: “Não matei ninguém, não fui atrás de ninguém, mas aconteceu”.
A coincidência mencionada pelo deputado na ocasião foi a morte de
Jorge Luís dos Santos, poderoso traficante da favela de Acari. Ele havia
sido preso oito meses depois do roubo da motocicleta. Vivia até então
confortavelmente em um condomínio de casas em Salvador. Transferido para
o Rio, foi encontrado morto em sua cela antes do amanhecer, enforcado
com a própria camisa, ajustada em um nó de marinheiro.
Bolsonaro ensinou os filhos a seguir seu exemplo. Em junho de 2016, o
vereador Carlos Bolsonaro foi assaltado na Avenida Maracanã, Zona Norte
do Rio, enquanto esperava o semáforo abrir. Como o pai, também estava
em uma moto. E, como o pai, não reagiu — entregou o dinheiro que tinha
no bolso traseiro da calça. Dois meses antes, o primogênito Flávio,
deputado estadual que disputará uma vaga no Senado em outubro, trocou
tiros com bandidos e disse ter acertado um deles ao presenciar um
assalto na Avenida das Américas, na Barra da Tijuca. No fim de 2017,
Carlos, de novo, apareceu no YouTube narrando como sacou sua arma para
prender um menor sem antecedentes criminais que, segundo ele, tentava
roubar uma idosa.
O presidenciável, que vez por outra ainda sai de casa com uma arma na
cintura, tem amigos que mataram mais de uma vez. Um deles, dono de
construtora, que também mora na Barra da Tijuca, reagiu em dois dos
quatro assaltos de que foi vítima. No primeiro, matou um homem com um
tiro na nuca, mas foi baleado três vezes — o que, entre outras
consequências, o obrigou a arrancar uma veia inteira do braço esquerdo
para adaptá-la ao coração. A cirurgia deixou uma cicatriz que se estende
do pulso ao cotovelo, em linha reta. Na segunda vez, percebeu o perigo
no retrovisor e se adiantou. Derrubou a dupla que vinha numa motocicleta
com a lateral do carro, abriu a janela e descarregou o revólver calibre
38 de oito tiros. Em seguida, acelerou e sumiu, sem telefonar para a
Polícia.
O assalto a Bolsonaro no inverno de 1995 foi registrado na 20ª DP, em
Vila Isabel. No mesmo dia, a Secretaria de Segurança Pública designou
50 policiais de diversas delegacias e departamentos especializados para
buscarem a motocicleta roubada. O secretário era velho conhecido do
deputado.
Um mês e meio antes do crime, a pasta havia sido assumida pelo
general alagoano Nilton de Albuquerque Cerqueira, que comandou o
Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operações de
Defesa Interna (DOI-Codi), órgão de repressão política da ditadura, em
1971, em Salvador. Naquele ano, o guerrilheiro Carlos Lamarca foi
encurralado e morto durante a Operação Pajussara, no interior da Bahia.
A escolha de Cerqueira para o comando da Segurança estadual — feita
pelo então governador, Marcello Alencar — causou polêmica. Entidades de
defesa dos direitos humanos repudiaram a nomeação. Durante a gestão, o
militar criou gratificações a policiais por bravura, e a Secretaria
registrou o maior crescimento no número de homicídios durante a década
de 1990, segundo o Centro de Pesquisa e Documentação de História
Contemporânea do Brasil da Faculdade Getulio Vargas (FGV).
Aluno da Academia Militar das Agulhas Negras (Aman) 25 anos antes de
Bolsonaro, Cerqueira conviveu com o candidato à Presidência no início de
1995, quando ambos conduziam seus mandatos de parlamentar em Brasília. O
general foi eleito deputado pelo Partido Progressista (PP), que se
uniria em agosto daquele ano ao Partido Progressista Reformador (PPR),
do qual Bolsonaro foi um dos fundadores. A junção resultou na criação do
Partido Progressista Brasileiro (PPB).
Em maio de 1990, então vereador no Rio, Bolsonaro também defendeu a
eleição do general para a presidência do Clube Militar, sob o argumento
de que era preciso transformar a agremiação em um difusor da voz
política da caserna. Na ocasião, Cerqueira disputou a diretoria do clube
com Diogo Figueiredo, irmão do general-presidente João Figueiredo.
Venceu.
Em 2013, a Comissão Nacional da Verdade interrogou Cerqueira. A ideia
era que o general comentasse as mortes de guerrilheiros na região do
Araguaia. Ele não contou muito mais do que “prender guerrilheiros não
era uma opção”. Em 2014, acabou responsabilizado pelo Ministério Público
Federal (MPF) por ter participado do planejamento do atentado à bomba
no Riocentro, em 1981. O caso está em julgamento no Supremo Tribunal
Federal (STF). Atualmente, o general vive em um apartamento em
Copacabana e, segundo seu advogado, Rodrigo Roca, aos 88 anos “já não
fala mais coisa com coisa”. “Ele está com alguma doença, não consegue
mais concatenar ideias”, disse Roca.
Em 1995, no dia do assalto, os policiais enviados por Cerqueira
seguiram até a favela do Jacarezinho, onde Bolsonaro supôs que a
motocicleta e a arma estivessem. Eram coordenados pela delegada
plantonista Martha Rocha, hoje deputada estadual pelo PDT. Contatada por
ÉPOCA, Martha Rocha disse não se lembrar do que aconteceu naquele dia.
Segundo o noticiário do período, a incursão foi malsucedida. Os
policiais voltaram à delegacia de mãos vazias. Três dias depois,
contudo, integrantes do 9º Batalhão da Polícia Militar encontraram a
moto de Bolsonaro, sem placa nem retrovisores, na Praça Roberto Carlos,
na favela de Acari.
Na mesma semana do roubo da motocicleta, o secretário de Segurança
mandou organizar uma megaoperação contra o narcotráfico em favelas da
Zona Norte. Enviou policiais civis e militares — incluindo pessoal do
setor administrativo da PM — para a missão. Um chefe do tráfico foi
preso na favela Para-Pedro. Quinze quilos de maconha e 10 mil papelotes
de cocaína foram apreendidos em Acari. Fuzis e metralhadoras,
confiscados no Morro do Turano e no dos Macacos. Um helicóptero da
Polícia Civil sobrevoou o Jacarezinho. Apesar do esforço, demorou oito
meses para a polícia encontrar na Bahia o líder do tráfico em Acari,
Jorge Luís dos Santos, mencionado por Bolsonaro durante a gravação do
Roda viva.
Santos foi preso em 4 de março de 1996, por volta das 23 horas.
Transferido de avião para a cela 3 da Divisão de Recursos Especiais da
Polícia Civil, na Barra da Tijuca, foi encontrado pela manhã com o
pescoço enlaçado por uma camisa presa à grade de ferro da saída de
ventilação e com os pés suspensos a 12 centímetros do chão. Na cela, às
5h30 da manhã, os policiais encontraram uma linha de náilon com o nó
lais de guia, o mesmo usado na forca, como se o traficante tivesse
simulado a maneira de suicidar-se. Na ocasião, a polícia ventilou que
Santos servira como fuzileiro naval na Marinha e que por isso conhecia o
nó. Tratava-se mesmo de um suicídio, disseram os peritos.
Santos era parceiro de Ernaldo Pinto de Medeiros, o Uê, um dos mais
perigosos traficantes cariocas, fundador da facção Amigos dos Amigos
(ADA), além de herdeiro de Darcy da Silva Filho, o Cy de Acari. No
complexo de favelas, Santos era querido por moradores e conhecido pelo
assistencialismo. Não faltava gás nem dinheiro para os que viviam ali e
para visitantes que vinham de comunidades da Baixada Fluminense. Também
ganhou fama por ter tido quase 30 filhos com mais de 20 mulheres. Aos 32
anos, antes de morrer, vivia com Márcia Frigues Vieira, de 18 anos, que
morava com o traficante desde os 12. O casal tinha um filho, Jean
Patrick. No dia seguinte à morte do marido, ela denunciou a jornalistas
que policiais costumavam extorquir a família. Na última vez que fora
pego, contou, Santos teve de pagar R$ 500 mil por sua liberdade.
No velório do traficante, faixas de luto foram penduradas. O comércio
baixou as portas. Cerca de 3.500 pessoas acompanharam o sepultamento em
um cemitério da Zona Oeste. Havia 2.500 balões de gás hélio, dez pombas
brancas e 16 ônibus fretados para levar moradores ao enterro. Um deles
bradou: “Um homem com filhos e dinheiro não ia se matar numa delegacia.
Todo mundo aqui tem certeza de que foram os policiais que o mataram”.
Depois da morte misteriosa, o governador Marcello Alencar divulgou
uma nota na qual chamou o enforcamento de “suposto suicídio”. Na mesma
mensagem, determinou uma apuração rigorosa da morte, a ser conduzida
pelo secretário Nilton Cerqueira, e lamentou a morte do traficante, cujo
depoimento seria de “grande valor”.
No inquérito aberto para investigar a morte, conduzido pela 16ª DP,
na Barra da Tijuca, além dos policiais que estavam de plantão, a mulher
de Santos, Márcia, e a mãe dela, Terezinha Maria Frigues de Lacerda,
foram ouvidas. No dia do enterro de Santos, Márcia disse que o marido
nunca fora um militar, conforme espalhou-se à época. “Fica uma dúvida.
Jorge Luís jamais foi fuzileiro ou serviu o Exército. Como fez aquele nó
da forca?”, disse ela. Um mês depois, ela e a mãe apareceram mortas a
tiros às margens da Rodovia Presidente Dutra.
Psicopata na pauta.
O Globo
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