O massacre de 126 detentos há quase dois anos em três presídios
brasileiros não foi suficiente para impulsionar mudanças significativas
nesses locais. Superlotadas, as unidades prisionais em Manaus, Boa Vista e Nísia Floresta,
na Grande Natal, ainda convivem com uma rotina de violações distante de
representar o efetivo controle e a adequada assistência do Estado aos
apenados.
Relatório do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura,
órgão do Ministério dos Direitos Humanos, aponta que os Estados
cumpriram menos de 5% das 185 recomendações feitas visando a melhorar a
estrutura das cadeias, garantir direitos dos presos e investigar
devidamente a responsabilidade dos massacres, reparando os parentes das
vítimas.
Os peritos, que voltaram a visitar os presídios logo após as mortes e
neste ano, constataram diversos problemas. Na Penitenciária de Alcaçuz,
onde 26 detentos foram assassinados, a rotina imposta pelos agentes do
local configura, segundo os especialistas, tortura física e psicológica
semelhante à notada na cadeia de Abu Ghraib, no Iraque.
Dizem os peritos que a rotina de revistas em Alcaçuz expõe os
detentos a nudez. Os procedimentos de abordagem dos agentes, em que
detentos não podem olhar ou se dirigir a eles, e os relatos de
“agressões preventivas” criam “ambiente de profundo constrangimento e
humilhação, que agride a autoestima, subjuga e provoca intenso
sofrimento psíquico da pessoa presa.”
Além disso, nos casos do Rio Grande do Norte e de Roraima há pessoas consideradas desaparecidas,
pois estavam no presídio no momento dos massacres, mas não foram dadas
como mortas nem consideradas foragidas. São 15 pessoas nessas condições
em Alcaçuz, mas o número pode subir para 32, pois para outros 17 o
Estado não explica os elementos que o levou a considerá-los foragidos.
Em Roraima, são sete pessoas.
“Conclui-se que a visibilidade dos problemas prisionais provocada
pelos massacres não modificou a condição do Estado brasileiro, repetindo
soluções paliativas e ações reativas, com maior ênfase em afastar-se de
suas responsabilidades sobre os massacres do que em dar conta das
questões que envolvem os grupos vitimados”, escreveram os peritos no
relatório final, que será divulgado nesta quarta-feira, 28, pelo
Ministério dos Direitos Humanos. “Apesar das iniciativas
bem-intencionadas, a visão e a determinação para sair do ciclo vicioso
da repressão-violência não se colocaram como prioritárias”,
acrescentaram.
O relatório diz não ter sido observado resultados satisfatórios
quanto à apuração, responsabilização e reparação dos massacres. No
Amazonas, mais de 200 pessoas foram denunciadas à Justiça pelo envolvimento com os assassinatos.
Mas em Roraima e no Rio Grande do Norte, as apurações pouco caminharam.
Os peritos destacam ainda que nenhuma investigação dedicou atenção ao
papel dos gestores nas causas dos ataques, desde diretamente por meio de
facilitação de entrada de armas, como denunciado em Manaus, até
indiretamente quanto às condições de precariedade dos presídios que
levaram à potencialização da força das facções.
Em virtude disso, o Mecanismo pedirá a entrada do Ministério Público
Federal na investigação das pessoas desaparecidas no Rio Grande do
Norte. Em reunião com promotores potiguares, os membros do órgão
disseram ter ouvido desses representantes do Ministério Público que é
cogitada a possibilidade de ser solicitada a federalização da
investigação do massacre. Consultado nesta terça-feira, 26, sobre a
informação, o Ministério Público potiguar disse que não procede que essa
saída tenha sido estudada.
“Muito mais que ‘meros acertos de contas’ ou ‘brigas entre facções’, tais declarações (referindo-se a declarações de gestores que ligaram os massacres a brigas entre facções)
entendem o conflito entre grupos organizados no interior de unidades
prisionais como algo dissociado dos problemas de gestão, ao mesmo tempo
em que, de forma implícita, subestimam a responsabilidade do Estado no
acompanhamento de rotinas, na prevenção de conflitos e preservação da
vida e integridade física dos custodiados”, destacam os especialistas.
“O Estado tem uma baixa capacidade de resposta tanto em situações de
crise como no desenvolvimento de políticas mais estruturais para a área.
No momento dos massacres, foram tomadas medidas de urgência, mas o
assunto acabou sendo esquecido tempos depois. Faltam respostas para a
realidade atual da política penal, marcada por violência e morte”, disse
ao Estado a coordenadora-geral do mecanismo, Valdirene Daufemback.
Apesar de crise, recursos do Funpen são subutilizados
Apesar do cenário de precariedade, os recursos milionários repassados
pelo Fundo Penitenciário Nacional (Funpen) estão sendo subutilizados. Em dezembro de 2016,
o governo repassou cerca de R$ 44 milhões para cada Estado; o Rio
Grande do Norte aplicou 17% da verba, o Amazonas, 14,8%, e Roraima,
2,8%. Em 2017,
foram mais R$ 21 milhões. O RN gastou 4,5% e os Estados do Norte não
aplicaram nenhum centavo do recurso até outubro deste ano, de acordo com
dados do Departamento Penitenciário Nacional (Depen).
Amazonas tem melhor evolução; RR e RN reforçam precariedades
No Estado do Amazonas, onde os avanços foram considerados mais
significativos, foram monitoradas 51 recomendações: 4% delas foram
cumpridas e 30% foram iniciadas. Por outro lado, 31% dos apontamentos
foram lidados apenas de maneira paliativa, enquanto 35% das
recomendações não foram cumpridas.
Considerou-se que medidas importantes foram tomadas para o
cumprimento da recomendação em dois casos no Estado: providências para
evitar a violência interna dos presídios, como a instalação de câmeras e
aumento do efetivo de segurança, tendo sido observadas, durante a
visita, medidas arquitetônicas para criar etapas de acesso às áreas
internas que ampliaram o controle e segurança, assim como a instalação
de equipamento de bodyscan.
Sobre a recomendação de o Estado abster-se de utilizar a Polícia
Militar em estabelecimentos penais para fins de guarda e vigilância
intramuros, tão somente destinando-a a pronta resposta para o
enfrentamento da crise de segurança, os peritos identificaram que a
Polícia Militar tem atuado em casos de revistas periódicas ou situações
de crise, assim foi considerado que houve providências relevantes para a
retirada da PM da rotina prisional.
Por outro lado, o relatório aponta indícios quanto à irregularidade e
à insuficiência do fornecimento de água; aos problemas com a qualidade
da comida; à ausência de atendimento odontológico; à ausência de oferta
de oportunidade de trabalho; à insuficiência de colchão; às mudanças
arbitrárias por parte de alguns funcionários de itens permitidos de
entrada para os visitantes; as dificuldades de atendimento de saúde, em
especial, quando é necessário o transporte para assistência externa;
falta de medicação; má qualidade de alguns itens do kit higiene e a
irregularidade na entrega; violência e abuso de autoridade nos
procedimentos de revista.
No sistema potiguar, foi monitorado o cumprimento de 73
recomendações. Dentre elas, 1% foi cumprida, 4% foram iniciadas e em 18%
dos casos houve medidas paliativas. O relatório destaca que 77% das
solicitações feitas não haviam sido cumpridas.
Os peritos constataram em Alcaçuz “o caráter exclusivamente
repressivo, baseado na lógica dos procedimentos disciplinares, algum
deles extremamente humilhantes, e na suspensão de direitos, não
colaboram em nada para o enfrentamento da crise estrutural prisional,
apenas a alimentam”.
“A ampliação do uso da força como forma de gerir estabelecimentos
penais, constituindo modos de atuar que dificultam a implementação de
políticas e serviços adequados para a população privada de liberdade,
impedem o cumprimento adequado da Lei de Execução Penal e criam diversas
situações onde a prática da tortura é exercida com naturalidade por
aqueles que deveriam custodiar as pessoas privadas de liberdade”,
descreveram.
Os especialistas criticam a “omissão das autoridades” na apuração dos
desaparecimentos. O conjunto de indícios, sustentam, corroboram a
possibilidade da existência de práticas de desaparecimento forçado.
O Estado apurou que o número de presos abrigados nas
Penitenciárias Estaduais de Alcaçuz e Rogério Coutinho Madruga, cenário
da rebelião que deixou 26 detentos mortos em janeiro de 2017, é mais
que o dobro da capacidade nominal, de 1.022 vagas.
Enquanto o déficit de vagas nas carceragens potiguares se aproxima
das cinco mil vagas, a Secretaria de Estado da Justiça e da Cidadania
(Sejuc/RN) tem em caixa mais de R$ 50 milhões repassados pelo
Departamento Penitenciário Nacional (Depen) para construção de novos
pavilhões em pelo menos três penitenciárias estaduais e melhorias nos
sistemas de segurança e compra de material de proteção individual para
os agentes penitenciários.
Os recursos, porém, correm o risco de serem devolvidos por
inutilização e se tornarem alvo de investigação do Ministério Público. A
Sejuc/RN, em contrapartida, afirma que todos os processos seguem as
diretrizes do Depen.
Em Roraima, o relatório aponta que a realidade de precariedade na
Penitenciária Agrícola de Monte Cristo (PAMC), em Boa Vista, se estende
há ao menos quatro anos. “As questões da PAMC e da política penal em
Roraima têm sido tratadas de forma emergencial e, quando ocorre uma
circunstância de crise, a resposta tem sido o aumento da restrição de
direitos das pessoas presas, legitimação do uso indevido da força,
transferências para o Sistema Penitenciário Federal, adoção de rotinas
de exceção e uso de recursos para soluções caras e ineficientes.”
A maior unidade prisional roraimense estava sendo comandada por
líderes de facções criminosas, e ninguém entrava ou saia do presídio há
vários meses. Os presos ficavam fora das celas e os líderes de facção
tinham acesso as chaves e cadeados. Além disso, mais de 23 túneis já
foram encontrados na unidade e cerca de 40 presos assassinados desde o
ano passado. A situação motivou o pedido da Procuradoria-geral da República por uma intervenção federal no Estado. Os gestores federais assumiram o sistema penitenciário local nesta semana.
Em novembro, a juíza Joana Sarmento, da Vara de Execuções Penais do
Poder Judiciário havia denunciado que o sistema prisional de Roraima,
estava à beira de uma explosão. Ela denunciou falta de alimentação,
falta de combustível para atendimento de demandas judiciais, falta de
insumos básicos como papel e demais materiais administrativos, além do
fato dos agentes penitenciários estarem sem receber salários há mais de
60 dias.
No final de 2016, o Governo do Estado anunciou a construção de uma
unidade de segurança máxima para que pudesse comportar todos os presos,
mas até hoje o projeto não saiu do papel. As obras no sistema prisional
devem abrir mais 789 vagas, num investimento de R$ 33 milhões, além da
reforma da PAMC, que custará R$ 10 milhões e deve melhorar as condições
das celas para 420 detentos além de abrir mais 240 vagas, somando um
total de 1029 novas vagas.
Não há como retirar gestão terceirizada, diz Amazonas
O secretário da administração penitenciária do Amazonas, coronel
Cleitman Rabelo Coelho, destacou que as recomendações do Mecanismo não
têm cumprimento obrigatório pelo Estado. “Quem decide é o governador”,
disse. Sobre as mudanças realizadas no Complexo Penitenciário Anísio
Jobim (Compaj) desde o massacre, ele destacou a “aplicação de
ferramentas de controle” e “mudanças de procedimento”. “A revista
protege a integridade física do preso e evita rebeliões”, acrescentou.
Sobre a recomendação para mudança no modelo de gestão, Coelho disse
que o Estado não tem equipe técnica para substituir de imediato a
cogestão adotada. “Estamos formando aos poucos corpo técnico para poder
substituir as pessoas que estão no modelo de cogestão”, disse.
A Sejuc/RN disse não ter tido acesso ao relatório e decidiu não
comentar a situação. A reportagem não obteve retorno para as questões
feitas para o governo de Roraima. A reportagem também solicitou
entrevista com o ministro Raul Jungmann, da Segurança Pública, mas não
houve resposta da pasta.
Alçacuz na pauta...
Estadão.
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